Contos/Cronicas - Impedimento
Autora: Alessandra Rosa
I
Os
dois se conheceram pelo acaso, era época de Copa do Mundo, o bar estava lotado,
pessoas gritavam em uma só voz: Brasil! Também gritavam alguns palavrões e
ameaças de morte ao time rival, estavam completamente eufóricas, tudo num clima
totalmente romântico e propício para duas pessoas se apaixonarem. O time
adversário havia feito um gol – os torcedores quase quebraram a televisão, um
deles começou a se engasgar com um caroço de azeitona. Desespero! As atenções
se voltaram para o homem que ficara roxo, uma cor que não combinava com a decoração
verde e amarela do lugar. Alguém precisava fazer alguma coisa e rápido! Uma
morte em pleno jogo era inadmissível, podia dar azar, ou pior: iria atrapalhar
todo mundo de ver o resto da partida.
Foi
quando ela apareceu em sua camisa falsificada da seleção brasileira, quinze
reais na feira do rolo, mas sua beleza era tamanha que merecia camiseta
original autografada pelo Pelé. Ninguém soubera dizer de onde a guria teria
surgido, provavelmente estava nas mesas do fundo, apreciando o jogo longe de
tanta gente bêbada e feliz. Enquanto todos aguardavam ansiosos por algum
milagre, a garota passou seus braços firmes em volta do homem que reagiu
prontamente ao socorro, cuspiu longe o caroço, tão longe que acertou o olho
direito da avó do dono do bar, mas ninguém percebeu. Primeiro o alívio, depois
os vivas e os parabéns para a mocinha que salvara o fim do primeiro tempo,
digo, a vida do rapaz. Ela o olhou nos olhos, ele estava pálido.
-
Você está bem? – perguntou.
O
homem desmaiou, havia passado tempo demais sufocado pela azeitona.
II
Quando o
Gregório acordou no quarto do hospital e viu Amália, que não tirava os olhos
dele nem por um minuto, soube que desmaiar no bar do Juca estava em seu
destino! O que mais seria? Amália não só salvara a sua vida, fizera mais do que
isso, depois de chamar uma ambulância para leva-lo ao hospital e ficar ao lado
dele até que acordasse, tirou da bolsa um desses celulares de última geração,
esses que tocam música, tiram fotos, acessam a internet e só faltam fritar ovo
por você, mas o mais importante de tudo: dava para assistir o fim do jogo nele.
Gregório
se apaixonou por Amália, não só porque ela era linda e uma boa companhia para
assistir ao futebol, mas porque, além disso, ela entendia tudo do assunto,
xingava o juiz, sabia o nome de todos os jogadores do time do Brasil (e do time
adversário também), sabia as táticas, os posicionamentos dos jogadores em
campo, as regras, tudo! Amália era a mulher perfeita! Uma enfermeira adentrou o
quarto logo que o jogo acabou (quatro para o Brasil e um para o Japão), disse
que o Sr. Gregório já podia ir embora, havia sido apenas um susto, mas que ele
tinha um ótimo anjo-da-guarda – a Amália. Os dois ficaram vermelhos e trocaram
sorrisos tímidos, Gregório acompanhou o anjo até a sua casa. Não, não teve
beijo nem números de telefone trocados, porque Amália era moça direita, sem
essas sem-vergonhices.
Os
dois agora frequentavam o bar do Juca diariamente. Diziam que era para ver os
outros jogos da Copa. Mentira. Era para se verem mesmo, uma coisa bem
platônica, bem amor de colegial. Gregório oferecia uma latinha de cerveja para
Amália, ela aceitava e os dois acabavam sempre na mesma mesa, bebendo,
conversando, dividindo a conta e indo cada um para sua casa, e digo que
dividiam a conta porque Amália era contra a ideia de homem ter que pagar tudo,
era um doce essa mulher, um pitéu!
Passou-se
menos de uma semana e o Brasil iria jogar de novo, dessa vez contra o Gana nas
oitavas-de-final, a expectativa dos torcedores ia a mil, mesmo todos sabendo
que o adversário não era nenhuma Argentina da vida. Apesar disso ainda tinha os
que diziam que era bom não sair menosprezando qualquer seleção, não se pode
confiar demais a ponto de relaxar na defesa.
Como
esperado, lá estavam na mesma mesa o Gregório e a Amália, as cadeiras bem perto
uma da outra, dois corações brasileiros batendo num compasso suave e diferente
dos demais corações, amavam o futebol e amavam estar um com o outro, tudo muito
lindo e purpurina! Tudo indo com gostinho de vitória, gostinho de Brasil três,
Gana zero. Agora é quartas-de-final – gritavam todos, o Juca chorava
emocionado, disse que era o “engasgado” e a “salva-vidas” que davam sorte pro
Brasil na Copa, todo mundo aplaudia, coisa linda de se ver! E foi assim, nesse
clima de goleada que os dois se beijaram pela primeira vez.
III
Faltava
ainda quatro dias para o Brasil enfrentar a França, uma seleção que tinha
Zidane, um perigo, ou uma bobagem. A França tinha o Zidane, mas o Brasil tinha
o quadrado mágico: Fenômeno, Kaká, Ronaldinho Gaúcho e Adriano. E além dos
quatro, tinha o Gregório e a Amália, o que poderia dar errado? Somos os
melhores no futebol, sempre fomos!
Durante
esses poucos dias que antecediam a partida contra a França, os dois apaixonados
não voltaram ao bar do Juca, não precisavam mais de pretextos para encontros, saíam
de mãos dadas na rua, contavam piadas e até já estavam espremendo espinha um do
outro, coisa que só acontece com casal muito íntimo e olhe lá! Surgia vez por
outra o assunto de mudar o status em suas redes-sociais, de solteiro para
namorando, quem sabe?! Mas Amália queria ir devagar, os dois podiam jogar um
pouco de Playstation antes para se conhecerem melhor, agitar um churrasco com
os amigos. Mulher ideal!
Nessa
onda de paixão, Gregório convidou Amália um dia antes do jogo para saírem à
noite, iriam num restaurante com música ao vivo – pagode, e para alívio geral,
ela também tinha os mesmos gostos musicais que os dele. Os dois, como grande
parte da população brasileira nessa época, saíram com suas camisas da seleção,
a moda era mostrar-se patriota. Eles dançaram, comeram, beberam e cansaram.
Hora de voltar para casa, Gregório não tinha carro, mas isso de nada importava
para Amália, os dois iam a pé para a casa dela, numa caminhada romântica
admirando o céu pelo caminho. O céu que parecia tão carregado, tão escuro,
tão... Começara a chover.
-
Ah, Amália! Essa era a minha camisa da sorte para ver o jogo, não vai dar tempo
de secá-la para amanhã! – falava enquanto os dois corriam para encontrar algum
lugar coberto.
-
Essa também era a minha camisa da sorte, mas deixa isso pra lá, Gregório! Eu
tenho outras camisas da sorte em casa! – e eles riram. Ensopados.
No
outro dia o clima estava apreensivo, ia ser uma disputa de verdade, agora era
pra valer, não ia ser moleza passar pelo time da França. Gregório foi o
primeiro a chegar ao bar, achou estranho, Amália sempre era pontual, sempre
chegava antes dele, mas nesse dia não. Resolveu sentar e esperar, era o único
que não estava com a camisa da seleção, no lugar resolveu colocar sua camisa da
sorte do Corinthians. O primeiro tempo havia terminado e nada da Amália
aparecer, o jogo estava zero a zero, o Juca disse que isso era culpa da
Salva-vidas, se ela não chegasse logo ia dar azar!
O
segundo tempo começara. Os ânimos agitados, Gregório estava se odiando por ter
esquecido o celular em casa, podia ligar para ela, perguntar se estava tudo
bem, mas esse suspense todo, o jogo... Ele olhou para trás mais uma vez, ficava
olhando na esperança de vê-la chegar, já passava dos dez minutos do segundo
tempo, quando se virou mais uma vez, ela apareceu. Ele levantou aflito para
recebê-la, perguntar o que havia acontecido... CHOQUE. A Amália... Não era
possível, Deus! – pensou Gregório, era uma tragédia: ela estava parada na porta
do bar, possivelmente pensando a mesma coisa e não era só isso, ela estava
vestindo uma camiseta do Santos, repito, do SANTOS!
GOOOOOOOOOOOOL!
O
jogador Henry foi o responsável pela virada do placar, o sonho dos brasileiros dizendo
adeus. A câmera mostrava os torcedores franceses comemorando no estádio, o bar
do Juca num profundo silêncio.
-
Como é que você pôde fazer isso comigo, Amália?! Você me enganou esse tempo
todo, você é santista! – Gregório estava quase chorando, que decepção em pleno
segundo tempo.
-
Você nunca me perguntou para qual time eu torcia! Eu é que estou me sentindo
traída, seu, seu, seu... Corintiano sem Libertadores! – ela ficou brava, gritou
as palavras e todo o bar ouviu. Uns colocaram a mão na boca ao perceber a
tragédia, outros desmaiaram.
-
Deus do céu! Não briguem! Vocês se dão tão bem! – implorou o Juca quase a beira
das lágrimas de crocodilo.
-
Não quero saber não, seu Juca, perto desse fracassado é que eu não vou ficar! –
Amália virou as costas e saiu.
-
Vai mesmo, baleia! – berrou o Gregório, mas só depois que ela foi embora.
O
Brasil perdeu a Copa e teve que voltar para casa com o orgulho ferido. O Juca
ainda diz que a culpa do Brasil não ter ganhado o título de Hexa em dois mil e
seis foi por culpa do Engasgado e da Salva-vidas. Pode ser que sim ou pode ser
que não. Pode ter sido culpa do Henry ou do Gregório e da Amália, mas disso
tudo eu tiro uma lição: às vezes o amor não torce pro mesmo time da gente.










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